domingo, 5 de junho de 2016

DESERTO



Como queimam as tardes
Estupidamente iguais,
Calor colado aos ossos,
Torpor  dorido
Ausência entranhada, 
Longe do oásis
Que os sentidos buscam
Sem cessar...

Adelson Amaral
5/6/2015










domingo, 29 de maio de 2016

Numa folha de papel amarrotada
Com palavras inscritas não ditas
O halo dos passos,
Sempre presentes sempre ausentes,
Permanece.
Metáfora de uma história inacabada
Que se repete até à exaustão
Ora vento ora pena
Meio sorriso meio desdém
Completa etapa de um tempo escasso 
Que foge
Da inquietude 
Do desespero dos sonhos aniquilados
pela prepotencia dos cobardes

Ficarás por aí esfíngica altiva
Desapossada do mundo que te amou
Só 
Sem silêncio sem dor sem perfume
Quadro perfeito para o teu desamor


Adelson Amaral
28/05/2016










domingo, 1 de maio de 2016

Vivo na Esperança de um Gesto

Vivo na esperança de um gesto 
Que hás-de fazer. 
Gesto, claro, é maneira de dizer, 
Pois o que importa é o resto 
Que esse gesto tem de ter. 
Tem que ter sinceridade 
Sem parecer premeditado; 
E tem que ser convincente, 
Mas de maneira diferente 
Do discurso preparado. 
Sem me alargar, não resisto 
À tentação de dizer 
Que o gesto não é só isto... 
Quando tu, em confusão, 
Sabendo que estou à espera, 
Me mostras que só hesitas 
Por não saber começar, 
Que tentações de falar! 
Porque enfim, como adivinhas, 
Esse gesto eu sei qual é, 
Mas se o disser, já não é... 

Reinaldo Ferreira, in 'Um Voo Cego a Nada' 

Sou

Sou o que sabe não ser menos vão 
Que o vão observador que frente ao mudo 
Vidro do espelho segue o mais agudo 
Reflexo ou o corpo do irmão. 
Sou, tácitos amigos, o que sabe 
Que a única vingança ou o perdão 
É o esquecimento. Um deus quis dar então 
Ao ódio humano essa curiosa chave. 
Sou o que, apesar de tão ilustres modos 
De errar, não decifrou o labirinto 
Singular e plural, árduo e distinto, 
Do tempo, que é de um só e é de todos. 
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada 
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada. 

Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda" 

quinta-feira, 28 de abril de 2016

domingo, 24 de abril de 2016

Poética - Poema de Manuel Bandeira


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Prince - AnotherLove

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia" 

Até Amanhã - de Eugenio de Andrade


Sei agora como nasceu a alegria, 
como nasce o vento entre barcos de papel, 
como nasce a água ou o amor 
quando a juventude não é uma lágrima. 

É primeiro só um rumor de espuma 
à roda do corpo que desperta, 
sílaba espessa, beijo acumulado, 
amanhecer de pássaros no sangue. 

É subitamente um grito, 
um grito apertado nos dentes, 
galope de cavalos num horizonte 
onde o mar é diurno e sem palavras. 

Falei de tudo quanto amei. 
De coisas que te dou 
para que tu as ames comigo: 
a juventude, o vento e as areias. 

Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã" 

domingo, 17 de abril de 2016